terça-feira, 20 de março de 2012

Posted by Victor Bastos | File under :

O ser humano, por ser dotado de capacidade intelectiva, acaba por deparar-se com uma gama formidável de decisões a serem tomadas no decorrer de sua vida. É esperado, pois, que seja possível atravessar a vida tomando as mais corretas decisões possíveis. Porém, não é isso o que se vê ao estudar a História humana. Decisões erradas custaram, e ainda custam, muito caro, o que prova a necessidade de uma reflexão sobre qualquer decisão a se tomar.
A princípio, a primeira grande escolha do ser humano em sua vida consciente é justamente sobre a reflexão: viver ao acaso, entregue aos instintos e desejos, tomando a vida como uma passagem a ser sentida ao invés de praticada, ou uma vida enraizada no pensar, conseqüentemente praticada de forma efetiva e racional, na qual cada passo dado seja antes pensado.
Sobre essa única decisão, a reflexão por muitas vezes acaba sendo feito sem uma maturidade plena. A razão disso reside na natureza humana: como ser pensante, uma existência animalesca, desligada de qualquer tipo de estudo aprofundado acerca das escolhas tomadas, inevitavelmente contraria a raiz humana. Prova disso é que a reação normal de um indivíduo, ao notar uma decisão errada, é voltar atrás e buscar consertá-la.
Dado esse passo inicial, a prática de uma atividade reflexiva se dá intensamente. Desde o jovem que optou por seguir a carreira jurídica, passando pela moça que escolheu a prática do lesbianismo, até o filho que, vendo seu pai a agonizar, decidiu desligar os aparelhos médicos que o mantinham vivo, têm-se evidências da grandiosidade do poder de uma decisão, e da importância de uma reflexão acerca dessa decisão. Os exemplos são inúmeros de que o cérebro humano exerce uma importância além dos conceitos da biologia. Isso é uma verdade incontestável.
Essa atividade pensante acaba por refletir em todas as esferas do indivíduo. Uma delas é a sua manifestação acerca dos assuntos do mundo que o cerca. Daí advém a dicotomia conceito x preconceito. Para se formar uma opinião, primeiro muito se deve pensar. “O buraco é sempre mais embaixo”. É essa a primeira frase que deveríamos manter em mente quando imaginamos que temos uma opinião formada sobre determinado assunto.  Principalmente em se tratando de assuntos polêmicos (para além das polêmicas dos mamilos). Já pensou no que resulta uma opinião isenta de reflexão acerca de, por exemplo, a questão do aborto?
Aborto... é assunto batido, talvez. Mas qual assunto não o é? Se pararmos para avaliar, quanto mais martelado determinado tema, melhor resolvido ele acaba sendo, porque abrange o máximo possível de averiguações. Pois que assim seja.
Aí me vem a leitura do Código Penal, como não devia deixar de ser. Em noção apresentada pelo ilustríssimo mestre Celso Delmanto, conforme leitura que estava fazendo: “Aborto, para efeitos penais, é a interrupção intencional do processo de gravidez, com a morte do feto”. O diploma defensor dos nossos réus (conforme palavras do grandioso mestre Nasser Netto) trata uma definição friamente técnica, e com essa mesma abordagem prevê as hipóteses de aborto que o Código há de avaliar. Há a previsão de uma condição de aborto que não resultará em penalização à praticante, tal qual seja, conforme o art. 128:

  Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

        Aborto necessário
        I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

        Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
    II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

O debate é mais social do que jurídico. É claro que, a olhares do Direito, a discussão toda vai girar em termos do ocorrido, o famoso “cada caso é um caso”. Porém, a questão ainda está passível de discussões, como afinal também está qualquer outro delito previsto no nosso diploma criminal. Em tese, isso poderia ser abordado em texto posterior, toda a convenção de normas do Direito advém justamente do consenso da sociedade. O Direito é fruto dos entendimentos sociais, porquanto deverá estar em consonância com os ditames dos estratos componentes da respectiva sociedade na qual se insere.
Para além dos debates jurídicos, antes de neles adentrarmos o entendimento social precisa estar focado num ponto do qual deriva o Direito a se formar. Por mais que seja uma espécie de “porto seguro” por já ter uma norma prevista, a questão do aborto ainda gera muitos debates pelo significado social. Quantas vezes não caímos no diapasão, por exemplo, do significado religioso do aborto frente ao significado médico? Mais especificamente, quando não caímos no debate entre moral e Direito? Dizer o Código Penal que existe a possibilidade da permissão do aborto em caso X, mas grupos sociais avaliarem que não há caso nenhum. Esse debate sempre ocorre, localizado ou amplo, e o resultado desses embates pode vir a ditar mudanças na legislação.
A dúvida maior é relativa aos embates da questão moral. Pode ou não pode? Na verdade, em âmbito moral, deveria ser “deve ou não deve”. Coloquemos dois exemplos aos olhos de uma possível reação da sociedade (baseado em situações similares anteriores). Exemplo A: cidadã, após consumada a relação consentida, contrai gravidez e, não desejando o filho, busca o procedimento do aborto. Exemplo B: cidadã, após consumada relação sem consentimento, sendo ela vítima de estupro, contrai a gravidez e passa a aguardar filho do homem que a estuprou e, não desejando o descendente, busca o procedimento do aborto.
“E agora, José?”. Pois é. E agora? A diferença resta clara como cristal. Geralmente, bastaria a verificação fática para que o entendimento fosse que, no caso A, não cabe o aborto, enquanto que no caso B, cabe. Esse é o ditame do Código Penal. O diapasão entre o pode e o não pode resta aberto, porém, nas camadas sociais. Em alguns momentos ocorre até mesmo a inserção dos Direitos Humanos na situação. Acaba existindo uma opinião que considera o aborto praticamente um homicídio, independente da situação, imperdoável em sua essência.
Conforme mencionei no começo do texto, a questão está envolta pela necessidade de uma decisão. Mais além vou eu: a questão está envolta por uma reflexão bastante intrigante. O que gera todo esse agravante intenso na questão do aborto? Se muitos o consideram um homicídio sem tirar nem por, o que o torna tão impensável frente a outros homicídios?
A concepção social parece indicar que, por se tratar de um ente sem defesa nenhuma perante o aborto, a prática é taxativamente condenada. Ademais, um ente por toda uma vida pela frente, todas as possibilidades, tirada tendo a sua chance de fazer parte do mundo. Tudo isso ruma à enfática negativa. Longe de questionar o mérito da questão, mas isso não me parece suficiente para transformar o aborto em coisa mais horrenda do que homicídio, seja ele qual for. A vida do indivíduo não é tirada da mesma forma? Independente de idade, de perspectiva, de situação... vida é vida. Todas tem o mesmo valor. Logo, não caberia uma visualização do aborto como algo horrendo além da perspectiva.
É claro que com pé atrás digo isso. Caros leitores, fatalmente estamos tratando de algo com o qual não temos condições de concordamos em unanimidade, não pelo menos relativo ao parecer final. Entretanto, hemos de concordar ao menos na máxima acima dita: vida é vida, e todas tem o mesmo valor.
Partindo desse princípio de valorização da vida, como será que poderia se sentir uma vítima de estupro que espera por um filho do estuprador, descendente este que não deseja? Indizível. Essa é a palavra. Indizível. Indescritível. Um terror indubitável. Uma assimilação inexequível. Não há como saber o que se passa no psicológico e no emocional de uma pessoa nessa condição. Cada caso é um caso. Algumas podem vencer o trauma, e outras podem simplesmente bloquear tudo e permanecer eternamente marcadas. Nesse ponto, antes de discutir o mérito do aborto ou não, temos que refletir e repensar a nossa própria condição como julgadores. A missão? Imaginar-se no lugar dessa pessoa. Impossível, não é? Portanto, julgar como horrendo não podemos.
A religião condena? Condena. Tem sua visão para tal? Com certeza. Porém, nem isso é motivo. Esse mérito de responsabilização da religião, seja ela qual for, por questões como o aborto hei de abordar futuramente em outra oportunidade, pois a polêmica é imensa.
Questão posta, meus amigos: a partir de que momento podemos nos redimir perante a sociedade por conta de uma conduta reprovável por nós cometida? Essa pergunta é importante de se fazer, porque é o primeiro passo para compreender que reprovar uma conduta não se pode fazer simplesmente por discordância. Isso é o mais básico. Adicione aqui essa polêmica gigantesca do aborto. Será que é mesmo reprovável? Como agiríamos se estivéssemos no lugar da cidadã da situação A? E no lugar da cidadã da situação B?
Recai agora uma observação: será que nos levarmos pelo lado emocional é certo nessas questões? O emocional é subjetivo. Subjetivo NENHUM pode se sobrepor ao de outrem. Tanto para isso existe o Direito: traçar o objetivo num mar de subjetivos. Mais do que condenar ou proteger, devemos pensar. É claro que nenhum ser humano está acima da vida e da morte, assim como também nenhum ser humano tem o poder ou a condição de julgar baseado em seus valores individuais. É a sociedade quem manda. E para mandar, precisa-se separar o subjetivo do objetivo. Individualidade por individualidade, sequer viveríamos em sociedade, para começo de conversa. A vida coletiva proporcionada pela sociedade demanda que façamos concessões de opiniões e pensamentos pessoais em prol do conjunto. Posicionamentos individuais existem, e são importantes para construção do nosso caráter. Coletividades dentro da sociedade podem, e devem, se juntar e se fazer ouvir. Porém, o debate não pode ser guiado pela emoção. Se queremos um Estado justo, um conjunto de leis que abranja da maneira mais ampla possível todos os indivíduos, o caminho a ser traçado é o objetivo.
Julgar por julgar é fácil. Condenar é fácil. Proteger é fácil. O difícil é pensarmos numa linha que nos permita uma conclusão objetiva. Se você, amiga leitora, ousar se colocar numa posição dessas, sua decisão seria fácil? Decerto que não. Nunca é fácil decidir. E, como ressaltado no começo do texto, uma vida toda pode ser traçada a partir de uma escolha. Pesa demais a responsabilidade. Se queremos o bem de todos, a primeira coisa que devemos fazer é acreditar que não existe responsabilidade pequena o suficiente para nos transformar em donos da verdade. Por menor que seja, há muito em jogo. Decidir por decidir, cada um faz a sua decisão dentro dos limiares da Lei. Decisão individual, liberdade de expressão... são direitos nossos. Mais do que sobrepor os nossos aos de outrem, devemos respeitá-los. A missão não é fácil, mas está aí de maneira obrigatória a vencermos.



____________________________________________________

Não é fácil escrever sobre um tema como esse. Mais uma vez, espero tão somente que o debate se proceda e busquemos, aliados à razão, um entendimento claro e que possibilite uma visão mais ampla da questão. Ninguém é ignorante, mas também ninguém é sábio. Pensar sempre vale a pena. Eu que o diga.

Um comentário:

  1. Texto irretocável! Muito interessante o ponto de vista adotado ao eleger a justiça como âmbito de decisões. Se eu precisar desse texto, posso utilizá-lo em minhas aulas? Forte abraço, Victor!

    ResponderExcluir