terça-feira, 3 de abril de 2012

Posted by Victor Bastos | File under : ,

As polêmicas, aparentemente, não cansam de aparecer. E talvez esse seja o melhor caminho. São as peripécias por nós cometidas que nos alertam que temos que compensar nossos erros refletindo sobre os mesmos e ditando ações futuras que os evitem. Ao menos assim diz a lógica da conduta, o que claramente não é um exemplo muito prático na sociedade deste imenso país tupiniquim.
A mais recente confusão (é um apelido extremamente ameno, previno-os desde já) está, quem diria, alojada na Câmara dos Deputados. Já anda à espreita desde o final de 2011 um projeto de emenda constitucional (PEC), conhecida por PEC 99. Explico-lhes a situação, antes que passemos à questão do mérito.
Atualmente, temos elencados, no art. 103 da Constituição Federal, os entes que possuem autorização para propor ações diretas de constitucionalidade e ações declaratórias de inconstitucionalidade. Isso significa, em termos simples, que esses entes elencados no art. 103 da nossa Carta Magna são dotados do poder de abrir discussões que colocam em xeque a legalidade ou ilegalidade das nossas leis. São eles: Presidente da República, Mesa do Senado, Mesa da Câmara, mesas executivas e legislativas do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e confederações sindicais ou entidades de classes de âmbito nacional.
Pois bem, esses são os dizeres da nossa Constituição. Agora, sobre a supracitada PEC. De acordo com o seu texto, abre-se, pela emenda, uma alteração no art. 103, mais especificamente no inciso X, que dispõe sobre a capacidade das Associações Religiosas de postular para propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos frente à CF. Em outras palavras: entes não previamente regulamentados pela laicidade da Constituição podendo legislar em plenitude.
Senhoras e senhores, a novela Circo Brasil acaba de ganhar um novo capítulo. Não bastasse esse gigantesco contrassenso entre a laicidade do Estado e a presença tão marcante da bancada evangélica, que ousa subir o tom de voz como se fossem superiores a outras camadas, agora temos iniciativas para que o nosso texto fundamental seja modificado ao seu bel prazer, dando-lhes direitos inventados a partir de sua vontade de interferir em assuntos simplesmente porque vão contra o seu interesse.
Ah, mas o argumento defensivo existe, e ele é, a certo ponto, válido. Existe, sim, um conflito constante no campo ideológico envolvendo outros entes que contestam o lugar ocupado pelos religiosos que buscam transformar o Estado numa teocracia. Mas calma, tudo a seu devido tempo e lugar. Primeiro de tudo: não há qualquer problema de entidades e associações religiosas de reinvidicarem seus direitos. Isso é justo. São congregações de pessoas que possuem culto específico. A liberdade religiosa, prevista na nossa Constituição, permite isso. Também é permitido que professem suas ideias. Liberdade de expressão. Até aí tudo bem. Mas em hipótese alguma podem interferir no direito alheio, tampouco querer transformar a base do nosso ordenamento jurídico simplesmente para atender os seus anseios.
Existe uma razão para a existência do Estado laico. O Estado, enquanto ente que provê e fomenta todas as atividades e condições necessárias para a continuidade de uma plena vida em sociedade, precisa atender a todos os indivíduos de maneira equivalente. Não é o que acontece na prática, é verdade. Mas será que a solução seria uma quebra na laicidade do Estado? Já pararam para pensar nas consequências da aprovação desse PEC?
Discussão sobre legalização de drogas? Aborto? Pena de morte? Casamento gay? Direitos dos homoafetivos? Pesquisas de células-tronco? Campanhas de conscientização através de ensino da Educação Sexual nas escolas? Divórcio? Se depender deles, podem dizer adeus a tudo isso. Essa breve listagem de itens é uma composição de matérias, as quais encontram ferrenha oposição do grupo evangélico, o mesmo grupo que está levando a frente essa iniciativa da PEC. Na prática, portanto, as ações declaratórias de inconstitucionalidade podem se aplicar perfeitamente a temáticas como essas listadas. Lembremo-nos: uma vez “vitimada” por uma dessas ações, a matéria é paralisada por completo até julgamento pelo STF.
Quem foi que disse que a bancada evangélica tem qualquer respaldo para transformar a Constituição em seu canteiro de obras? E de onde foi que tiraram essa ideia? Alegam que a iniciativa é por conta da liberdade de religião. Sério? E por que então as entidades diretamente mencionadas e claramente favorecidas são exclusivamente as aliadas da bancada? A liberdade religiosa acaba a partir do momento em que os majoritários são favorecidos, é isso mesmo? Onde está menção aos hindus, ubandistas, muçulmanos, judeus, espíritas, seguidores do candomblém, dentre tantos outros membros de religiões minoritárias (numericamente falando)? Claramente percebemos que a iniciativa da PEC inclui única e exclusivamente um grupo ligado à corrente majoritária. E para onde vai o discurso da liberdade? Para o ralo, é para onde vai.
Completamente descabido: esse é só o primeiro e mais claro pensamento que surge ao imaginar a amplitude que esse PEC pode atingir. Já pensou, de repente quererem argumentar inconstitucional a matéria que trata sobre fabricação de anticoncepcionais? Criminalizar total e completamente o aborto, inexistindo sequer uma discussão sobre  o tema? Imagine você voltarmos à Idade Média com as correntes religiosas ditando com voz total os rumos que devemos ou não devemos tomar, usando de argumentos completamente descabidos dentro do ramo do Direito. A ideia de religião remonta a tradições, mas nem por isso ela deve ser o elemento norteador de uma nação inteira. É muito radical fazer essa comparação, mas lembrem-se qual foi o mais notável exemplo de união entre Estado e Religião da História. Isso mesmo: a Idade Média das Cruzadas, do Tribunal da Inquisição, das matanças de mulheres, da supressão do pensamento racional, e assim vai. É muito radical colocar isso dessa forma, bem sei. Entretanto, é uma prova de que é arriscado fazer essa junção. A religião promove sempre o bem dentre aqueles que a seguem. Um Estado teocrático (há quem diga que existe um risco do Brasil se tornar isso, pois compreendem como sinais prévios disso todas essas manobras das bancadas religiosas) é tudo, menos justo para com todos. A menos que todos sigam a mesma religião pelo Estado adotada, claro. Mas isso, logicamente, está muito distante da pluralidade palpável da sociedade brasileira.
Há quem diga, no final das contas, que estou exagerando. Será mesmo? Não me refiro à religião enquanto ideologia como culpada de tudo, e longe disso estou. Porém, o que é uma ideologia honrosa nas mãos de homens podres e sedentos de poder? Uma ferramenta de manipulação, desprovida de significado, com um único objetivo: o de comandar as populações e arrebanhar as pessoas. Alguém pode ter lembrado de Hitler ao ler isso, e com razão. Foi essa a tática usada por ele para manobrar toda a Alemanha em direção ao caos e à opressão.
Aceitemos, senhores. A laicidade do Estado é necessária. A partir do momento que tentamos impor ideias que remetam a um ou outro grupo, começa o desequilíbrio. Não bastasse toda a confusão que permeia a nossa política nacional, ainda aparece mais essa história de emendar a Constituição para aumentar os poderes de camadas que nada querem senão saciar sua vontade de comandar e de impor à toda a sociedade as suas ideias. Isso se chama opressão. Depois da ditadura militar, acho que o Brasil não quer mais nenhuma amostra dessa palavra. Só acho.


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Demorou mas saiu. Lembro a todos o seguinte: a ideia não é, aqui, provocar discussões por conta da religião à qual pertence grupo político X ou Y. A ideia é refletir acerca do que significaria a PEC 99 baseado no que o ser humano é capaz de fazer pelo poder. Pensemos, amigos, pensemos.