O ser humano,
por ser dotado de capacidade intelectiva, acaba por deparar-se com uma gama
formidável de decisões a serem tomadas no decorrer de sua vida. É esperado,
pois, que seja possível atravessar a vida tomando as mais corretas decisões
possíveis. Porém, não é isso o que se vê ao estudar a História humana. Decisões
erradas custaram, e ainda custam, muito caro, o que prova a necessidade de uma
reflexão sobre qualquer decisão a se tomar.
A princípio,
a primeira grande escolha do ser humano em sua vida consciente é justamente
sobre a reflexão: viver ao acaso, entregue aos instintos e desejos, tomando a
vida como uma passagem a ser sentida ao invés de praticada, ou uma vida
enraizada no pensar, conseqüentemente praticada de forma efetiva e racional, na
qual cada passo dado seja antes pensado.
Sobre essa
única decisão, a reflexão por muitas vezes acaba sendo feito sem uma maturidade
plena. A razão disso reside na natureza humana: como ser pensante, uma
existência animalesca, desligada de qualquer tipo de estudo aprofundado acerca
das escolhas tomadas, inevitavelmente contraria a raiz humana. Prova disso é
que a reação normal de um indivíduo, ao notar uma decisão errada, é voltar
atrás e buscar consertá-la.
Dado esse
passo inicial, a prática de uma atividade reflexiva se dá intensamente. Desde o
jovem que optou por seguir a carreira jurídica, passando pela moça que escolheu
a prática do lesbianismo, até o filho que, vendo seu pai a agonizar, decidiu
desligar os aparelhos médicos que o mantinham vivo, têm-se evidências da
grandiosidade do poder de uma decisão, e da importância de uma reflexão acerca
dessa decisão. Os exemplos são inúmeros de que o cérebro humano exerce uma
importância além dos conceitos da biologia. Isso é uma verdade incontestável.
Essa
atividade pensante acaba por refletir em todas as esferas do indivíduo. Uma
delas é a sua manifestação acerca dos assuntos do mundo que o cerca. Daí advém
a dicotomia conceito x preconceito. Para se formar uma opinião, primeiro muito
se deve pensar. “O buraco é sempre mais embaixo”. É essa a primeira frase que
deveríamos manter em mente quando imaginamos que temos uma opinião formada
sobre determinado assunto. Principalmente em se tratando de assuntos
polêmicos (para além das polêmicas dos mamilos). Já pensou no que resulta uma
opinião isenta de reflexão acerca de, por exemplo, a questão do aborto?
Aborto... é
assunto batido, talvez. Mas qual assunto não o é? Se pararmos para avaliar,
quanto mais martelado determinado tema, melhor resolvido ele acaba sendo,
porque abrange o máximo possível de averiguações. Pois que assim seja.
Aí me vem a
leitura do Código Penal, como não devia deixar de ser. Em noção apresentada
pelo ilustríssimo mestre Celso Delmanto, conforme leitura que estava fazendo: “Aborto,
para efeitos penais, é a interrupção intencional do processo de gravidez, com a
morte do feto”. O diploma defensor dos nossos réus (conforme palavras do
grandioso mestre Nasser Netto) trata uma definição friamente técnica, e com
essa mesma abordagem prevê as hipóteses de aborto que o Código há de avaliar.
Há a previsão de uma condição de aborto que não resultará em penalização à
praticante, tal qual seja, conforme o art. 128:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado
por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a
vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante
de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e
o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
O debate é
mais social do que jurídico. É claro que, a olhares do Direito, a discussão
toda vai girar em termos do ocorrido, o famoso “cada caso é um caso”. Porém, a
questão ainda está passível de discussões, como afinal também está qualquer
outro delito previsto no nosso diploma criminal. Em tese, isso poderia ser
abordado em texto posterior, toda a convenção de normas do Direito advém
justamente do consenso da sociedade. O Direito é fruto dos entendimentos
sociais, porquanto deverá estar em consonância com os ditames dos estratos
componentes da respectiva sociedade na qual se insere.
Para além dos
debates jurídicos, antes de neles adentrarmos o entendimento social precisa
estar focado num ponto do qual deriva o Direito a se formar. Por mais que seja
uma espécie de “porto seguro” por já ter uma norma prevista, a questão do
aborto ainda gera muitos debates pelo significado social. Quantas vezes não
caímos no diapasão, por exemplo, do significado religioso do aborto frente ao
significado médico? Mais especificamente, quando não caímos no debate entre
moral e Direito? Dizer o Código Penal que existe a possibilidade da permissão
do aborto em caso X, mas grupos sociais avaliarem que não há caso nenhum. Esse
debate sempre ocorre, localizado ou amplo, e o resultado desses embates pode
vir a ditar mudanças na legislação.
A dúvida
maior é relativa aos embates da questão moral. Pode ou não pode? Na verdade, em
âmbito moral, deveria ser “deve ou não deve”. Coloquemos dois exemplos aos
olhos de uma possível reação da sociedade (baseado em situações similares
anteriores). Exemplo A: cidadã, após consumada a relação consentida, contrai
gravidez e, não desejando o filho, busca o procedimento do aborto. Exemplo B:
cidadã, após consumada relação sem consentimento, sendo ela vítima de estupro,
contrai a gravidez e passa a aguardar filho do homem que a estuprou e, não
desejando o descendente, busca o procedimento do aborto.
“E agora,
José?”. Pois é. E agora? A diferença resta clara como cristal. Geralmente,
bastaria a verificação fática para que o entendimento fosse que, no caso A, não
cabe o aborto, enquanto que no caso B, cabe. Esse é o ditame do Código Penal. O
diapasão entre o pode e o não pode resta aberto, porém, nas camadas sociais. Em
alguns momentos ocorre até mesmo a inserção dos Direitos Humanos na situação. Acaba
existindo uma opinião que considera o aborto praticamente um homicídio,
independente da situação, imperdoável em sua essência.
Conforme
mencionei no começo do texto, a questão está envolta pela necessidade de uma decisão.
Mais além vou eu: a questão está envolta por uma reflexão bastante intrigante.
O que gera todo esse agravante intenso na questão do aborto? Se muitos o
consideram um homicídio sem tirar nem por, o que o torna tão impensável frente
a outros homicídios?
A concepção
social parece indicar que, por se tratar de um ente sem defesa nenhuma perante
o aborto, a prática é taxativamente condenada. Ademais, um ente por toda uma
vida pela frente, todas as possibilidades, tirada tendo a sua chance de fazer
parte do mundo. Tudo isso ruma à enfática negativa. Longe de questionar o
mérito da questão, mas isso não me parece suficiente para transformar o aborto
em coisa mais horrenda do que homicídio, seja ele qual for. A vida do indivíduo
não é tirada da mesma forma? Independente de idade, de perspectiva, de
situação... vida é vida. Todas tem o mesmo valor. Logo, não caberia uma
visualização do aborto como algo horrendo além da perspectiva.
É claro que
com pé atrás digo isso. Caros leitores, fatalmente estamos tratando de algo com
o qual não temos condições de concordamos em unanimidade, não pelo menos
relativo ao parecer final. Entretanto, hemos de concordar ao menos na máxima
acima dita: vida é vida, e todas tem o mesmo valor.
Partindo
desse princípio de valorização da vida, como será que poderia se sentir uma
vítima de estupro que espera por um filho do estuprador, descendente este que
não deseja? Indizível. Essa é a palavra. Indizível. Indescritível. Um terror
indubitável. Uma assimilação inexequível. Não há como saber o que se passa no
psicológico e no emocional de uma pessoa nessa condição. Cada caso é um caso.
Algumas podem vencer o trauma, e outras podem simplesmente bloquear tudo e
permanecer eternamente marcadas. Nesse ponto, antes de discutir o mérito do
aborto ou não, temos que refletir e repensar a nossa própria condição como
julgadores. A missão? Imaginar-se no lugar dessa pessoa. Impossível, não é?
Portanto, julgar como horrendo não podemos.
A religião
condena? Condena. Tem sua visão para tal? Com certeza. Porém, nem isso é
motivo. Esse mérito de responsabilização da religião, seja ela qual for, por
questões como o aborto hei de abordar futuramente em outra oportunidade, pois a
polêmica é imensa.
Questão
posta, meus amigos: a partir de que momento podemos nos redimir perante a
sociedade por conta de uma conduta reprovável por nós cometida? Essa pergunta é
importante de se fazer, porque é o primeiro passo para compreender que reprovar
uma conduta não se pode fazer simplesmente por discordância. Isso é o mais
básico. Adicione aqui essa polêmica gigantesca do aborto. Será que é mesmo
reprovável? Como agiríamos se estivéssemos no lugar da cidadã da situação A? E
no lugar da cidadã da situação B?
Recai agora
uma observação: será que nos levarmos pelo lado emocional é certo nessas
questões? O emocional é subjetivo. Subjetivo NENHUM pode se sobrepor ao de
outrem. Tanto para isso existe o Direito: traçar o objetivo num mar de
subjetivos. Mais do que condenar ou proteger, devemos pensar. É claro que
nenhum ser humano está acima da vida e da morte, assim como também nenhum ser
humano tem o poder ou a condição de julgar baseado em seus valores individuais.
É a sociedade quem manda. E para mandar, precisa-se separar o subjetivo do
objetivo. Individualidade por individualidade, sequer viveríamos em sociedade, para
começo de conversa. A vida coletiva proporcionada pela sociedade demanda que
façamos concessões de opiniões e pensamentos pessoais em prol do conjunto.
Posicionamentos individuais existem, e são importantes para construção do nosso
caráter. Coletividades dentro da sociedade podem, e devem, se juntar e se fazer
ouvir. Porém, o debate não pode ser guiado pela emoção. Se queremos um Estado
justo, um conjunto de leis que abranja da maneira mais ampla possível todos os
indivíduos, o caminho a ser traçado é o objetivo.
Julgar por
julgar é fácil. Condenar é fácil. Proteger é fácil. O difícil é pensarmos numa
linha que nos permita uma conclusão objetiva. Se você, amiga leitora, ousar se
colocar numa posição dessas, sua decisão seria fácil? Decerto que não. Nunca é
fácil decidir. E, como ressaltado no começo do texto, uma vida toda pode ser
traçada a partir de uma escolha. Pesa demais a responsabilidade. Se queremos o
bem de todos, a primeira coisa que devemos fazer é acreditar que não existe
responsabilidade pequena o suficiente para nos transformar em donos da verdade.
Por menor que seja, há muito em jogo. Decidir por decidir, cada um faz a sua
decisão dentro dos limiares da Lei. Decisão individual, liberdade de
expressão... são direitos nossos. Mais do que sobrepor os nossos aos de outrem,
devemos respeitá-los. A missão não é fácil, mas está aí de maneira obrigatória
a vencermos.
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Não é fácil escrever sobre um tema como esse. Mais uma vez, espero tão somente que o debate se proceda e busquemos, aliados à razão, um entendimento claro e que possibilite uma visão mais ampla da questão. Ninguém é ignorante, mas também ninguém é sábio. Pensar sempre vale a pena. Eu que o diga.
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Não é fácil escrever sobre um tema como esse. Mais uma vez, espero tão somente que o debate se proceda e busquemos, aliados à razão, um entendimento claro e que possibilite uma visão mais ampla da questão. Ninguém é ignorante, mas também ninguém é sábio. Pensar sempre vale a pena. Eu que o diga.
Texto irretocável! Muito interessante o ponto de vista adotado ao eleger a justiça como âmbito de decisões. Se eu precisar desse texto, posso utilizá-lo em minhas aulas? Forte abraço, Victor!
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