As polêmicas,
aparentemente, não cansam de aparecer. E talvez esse seja o melhor caminho. São
as peripécias por nós cometidas que nos alertam que temos que compensar nossos
erros refletindo sobre os mesmos e ditando ações futuras que os evitem. Ao
menos assim diz a lógica da conduta, o que claramente não é um exemplo muito
prático na sociedade deste imenso país tupiniquim.
A mais
recente confusão (é um apelido extremamente ameno, previno-os desde já) está,
quem diria, alojada na Câmara dos Deputados. Já anda à espreita desde o final
de 2011 um projeto de emenda constitucional (PEC), conhecida por PEC 99. Explico-lhes
a situação, antes que passemos à questão do mérito.
Atualmente,
temos elencados, no art. 103 da Constituição Federal, os entes que possuem autorização
para propor ações diretas de constitucionalidade e ações declaratórias de
inconstitucionalidade. Isso significa, em termos simples, que esses entes
elencados no art. 103 da nossa Carta Magna são dotados do poder de abrir
discussões que colocam em xeque a legalidade ou ilegalidade das nossas leis.
São eles: Presidente da República, Mesa do Senado, Mesa da Câmara, mesas
executivas e legislativas do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República,
o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso
Nacional e confederações sindicais ou entidades de classes de âmbito nacional.
Pois bem,
esses são os dizeres da nossa Constituição. Agora, sobre a supracitada PEC. De
acordo com o seu texto, abre-se, pela emenda, uma alteração no art. 103, mais
especificamente no inciso X, que dispõe sobre a capacidade das Associações
Religiosas de postular para propor ação de inconstitucionalidade e ação
declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos frente à CF. Em
outras palavras: entes não previamente regulamentados pela laicidade da
Constituição podendo legislar em plenitude.
Senhoras e
senhores, a novela Circo Brasil acaba de ganhar um novo capítulo. Não bastasse
esse gigantesco contrassenso entre a laicidade do Estado e a presença tão
marcante da bancada evangélica, que ousa subir o tom de voz como se fossem
superiores a outras camadas, agora temos iniciativas para que o nosso texto
fundamental seja modificado ao seu bel prazer, dando-lhes direitos inventados a
partir de sua vontade de interferir em assuntos simplesmente porque vão contra
o seu interesse.
Ah, mas o
argumento defensivo existe, e ele é, a certo ponto, válido. Existe, sim, um
conflito constante no campo ideológico envolvendo outros entes que contestam o
lugar ocupado pelos religiosos que buscam transformar o Estado numa teocracia.
Mas calma, tudo a seu devido tempo e lugar. Primeiro de tudo: não há qualquer
problema de entidades e associações religiosas de reinvidicarem seus direitos.
Isso é justo. São congregações de pessoas que possuem culto específico. A
liberdade religiosa, prevista na nossa Constituição, permite isso. Também é
permitido que professem suas ideias. Liberdade de expressão. Até aí tudo bem. Mas
em hipótese alguma podem interferir no direito alheio, tampouco querer
transformar a base do nosso ordenamento jurídico simplesmente para atender os
seus anseios.
Existe uma
razão para a existência do Estado laico. O Estado, enquanto ente que provê e
fomenta todas as atividades e condições necessárias para a continuidade de uma
plena vida em sociedade, precisa atender a todos os indivíduos de maneira
equivalente. Não é o que acontece na prática, é verdade. Mas será que a solução
seria uma quebra na laicidade do Estado? Já pararam para pensar nas
consequências da aprovação desse PEC?
Discussão
sobre legalização de drogas? Aborto? Pena de morte? Casamento gay? Direitos dos
homoafetivos? Pesquisas de células-tronco? Campanhas de conscientização através
de ensino da Educação Sexual nas escolas? Divórcio? Se depender deles, podem
dizer adeus a tudo isso. Essa breve listagem de itens é uma composição de
matérias, as quais encontram ferrenha oposição do grupo evangélico, o mesmo
grupo que está levando a frente essa iniciativa da PEC. Na prática, portanto,
as ações declaratórias de inconstitucionalidade podem se aplicar perfeitamente
a temáticas como essas listadas. Lembremo-nos: uma vez “vitimada” por uma
dessas ações, a matéria é paralisada por completo até julgamento pelo STF.
Quem foi que
disse que a bancada evangélica tem qualquer respaldo para transformar a
Constituição em seu canteiro de obras? E de onde foi que tiraram essa ideia?
Alegam que a iniciativa é por conta da liberdade de religião. Sério? E por que
então as entidades diretamente mencionadas e claramente favorecidas são
exclusivamente as aliadas da bancada? A liberdade religiosa acaba a partir do
momento em que os majoritários são favorecidos, é isso mesmo? Onde está menção
aos hindus, ubandistas, muçulmanos, judeus, espíritas, seguidores do candomblém,
dentre tantos outros membros de religiões minoritárias (numericamente falando)?
Claramente percebemos que a iniciativa da PEC inclui única e exclusivamente um
grupo ligado à corrente majoritária. E para onde vai o discurso da liberdade?
Para o ralo, é para onde vai.
Completamente
descabido: esse é só o primeiro e mais claro pensamento que surge ao imaginar a
amplitude que esse PEC pode atingir. Já pensou, de repente quererem argumentar
inconstitucional a matéria que trata sobre fabricação de anticoncepcionais?
Criminalizar total e completamente o aborto, inexistindo sequer uma discussão
sobre o tema? Imagine você voltarmos à
Idade Média com as correntes religiosas ditando com voz total os rumos que
devemos ou não devemos tomar, usando de argumentos completamente descabidos
dentro do ramo do Direito. A ideia de religião remonta a tradições, mas nem por
isso ela deve ser o elemento norteador de uma nação inteira. É muito radical
fazer essa comparação, mas lembrem-se qual foi o mais notável exemplo de união
entre Estado e Religião da História. Isso mesmo: a Idade Média das Cruzadas, do
Tribunal da Inquisição, das matanças de mulheres, da supressão do pensamento
racional, e assim vai. É muito radical colocar isso dessa forma, bem sei.
Entretanto, é uma prova de que é arriscado fazer essa junção. A religião
promove sempre o bem dentre aqueles que a seguem. Um Estado teocrático (há quem
diga que existe um risco do Brasil se tornar isso, pois compreendem como sinais
prévios disso todas essas manobras das bancadas religiosas) é tudo, menos justo
para com todos. A menos que todos sigam a mesma religião pelo Estado adotada,
claro. Mas isso, logicamente, está muito distante da pluralidade palpável da
sociedade brasileira.
Há quem diga,
no final das contas, que estou exagerando. Será mesmo? Não me refiro à religião
enquanto ideologia como culpada de tudo, e longe disso estou. Porém, o que é
uma ideologia honrosa nas mãos de homens podres e sedentos de poder? Uma
ferramenta de manipulação, desprovida de significado, com um único objetivo: o
de comandar as populações e arrebanhar as pessoas. Alguém pode ter lembrado de
Hitler ao ler isso, e com razão. Foi essa a tática usada por ele para manobrar
toda a Alemanha em direção ao caos e à opressão.
Aceitemos,
senhores. A laicidade do Estado é necessária. A partir do momento que tentamos
impor ideias que remetam a um ou outro grupo, começa o desequilíbrio. Não
bastasse toda a confusão que permeia a nossa política nacional, ainda aparece
mais essa história de emendar a Constituição para aumentar os poderes de
camadas que nada querem senão saciar sua vontade de comandar e de impor à toda
a sociedade as suas ideias. Isso se chama opressão. Depois da ditadura militar,
acho que o Brasil não quer mais nenhuma amostra dessa palavra. Só acho.
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Demorou mas saiu. Lembro a todos o seguinte: a ideia não é, aqui, provocar discussões por conta da religião à qual pertence grupo político X ou Y. A ideia é refletir acerca do que significaria a PEC 99 baseado no que o ser humano é capaz de fazer pelo poder. Pensemos, amigos, pensemos.
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Demorou mas saiu. Lembro a todos o seguinte: a ideia não é, aqui, provocar discussões por conta da religião à qual pertence grupo político X ou Y. A ideia é refletir acerca do que significaria a PEC 99 baseado no que o ser humano é capaz de fazer pelo poder. Pensemos, amigos, pensemos.