Não é de agora que se percebe a
expansão das bancadas evangélicas nas casas legislativas, tanto em número
quanto em ousadia nos projetos. Acontecimentos recentes, por outro lado,
apontam que algo está verdadeiramente se concretizando a partir desse crescimento,
e também certas ideias têm ganhado força.
Episódios simbólicos não faltam, dos
quais destaco dois: Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos
da Câmara dos Deputados e a explosão da ideia de uma "Jesuscracia"
brasileira, iniciada (ou amplificada, para melhor dizer) com a divulgação
daquele banner com várias siglas de partidos e entidades religiosas como apoio.
O que mais me perturba é que os
alicerces de algumas dessas ideias tão propagadas como cristãs ocultam
violações seríssimas ao que diz a Bíblia, por exemplo.
Nem preciso relembrar o leitor de que o
Brasil é um Estado laico. O diploma maior de nosso ordenamento jurídico aponta
a liberdade de cultos e crenças de forma inequívoca, mesmo que ainda se veja
questões como "o preâmbulo diz 'sob a proteção de Deus'" ou a
discussão da presença da frase "Deus seja louvado" das cédulas do
Real. A meu ver, nenhuma dessas duas características aponta uma enfática
"quebra" nesse princípio laico.
Uma pergunta a todos esses membros das
bancadas evangélicas que tentam empurrar de todas as formas possíveis suas
ideias, em detrimento dos que pensam diferente: já ouviram falar de algo
chamado livre-arbítrio?
Sim, esse mesmo. O mesmo livre-arbítrio
que é uma das bases do que Deus propiciou a cada uma das suas criações. A
liberdade da escolha. A possibilidade de que eu, você, ele e ela possamos tomar
o rumo que queremos, com base em nossas próprias vontades. A
"espontaneidade", em outras palavras.
Caso fosse de outra forma, teria sido
bem fácil Deus criar cada um de nós como robôs, nos quais iria ser programada a
crença automática e cega, não é? Mas não. Conforme os ditames bíblicos, foi
justamente sob a bandeira da liberdade que cada um foi concebido, o que
possibilita que nossas escolhas sejam, chamemos assim, "desprovidas de
vícios", ou seja, desvinculadas de quaisquer forças que nos façam tender
de um lado para o outro.
Epa... "forças que nos falam
tender de um lado para o outro". Como será que soa, com base nisso, a
enfática vontade de tantos políticos de transformarem todo o Estado em seu
objeto de estimação? Como podemos chamar, a partir disso, esses discursos
inflamados e unilaterais de "minha visão do Brasil é essa, quero que o
Brasil seja assim", interpondo sempre a primeira pessoa do singular, em
detrimento do que deveria ser o discurso não só do político, mas o de todo
cidadão consciente em sociedade: a primeira pessoa do plural. O
"nós".
Tive a oportunidade de ouvir palavras
de pastores algumas vezes, e dentre o que escutei uma das coisas que mais me
chamou a atenção foi o significado dado ao termo "evangelização".
Contextualizando o que apreendi, numa
de minhas viagens tive a oportunidade de me ver conversando sobre
evangelização. Recordo-me de dizer: "evangelizar, assim entendo, é a
prática de, usando-se da boa vontade e da boa intenção, anunciar e falar sobre
os ditames da Bíblia e todas as ideias e ensinamentos nela trazidas e por nós,
através da reflexão espiritual guiada pela Palavra, convidando as
pessoas a esta reflexão e eventual crença". Recomendo que releiam minha
conceituação. A palavra "convidando" está bem destacada. Sabe a razão
disso? Porque evangelizar não é empurrar nossas ideias. É trazer a ideia, e
deixá-la na mente das pessoas para que elas, por vontade própria, reflitam
nisso. Aí sim, a partir do seu próprio livre-arbítrio, optar por qual caminho
seguir, seja o de acolher as mensagens que trouxemos a seu conhecimento, seja o
de não aceitar essas ideias.
De uma forma ou de outra, é questão de
escolha de cada um.
A partir disso, responda-me você, Sr.
Marco Feliciano: o sr. está sendo um bom pastor nesse momento? Um bom
evangelizador? Digam-me, aliás, todos vocês que tentam usar dos seus poderes
para forçar as suas ideias em detrimento daqueles que escolhem não segui-las:
os excelentíssimos senhores desejam uma "Jesuscracia" ou uma ditadura
religiosa contemporânea?
Falam em lançar uma nova Constituinte e
implantar a "Jesuscracia" no Brasil. Sabe a parte mais engraçada? Os
únicos que ouço concordarem com essa ideia são eles próprios. Saia na rua e
pergunte das pessoas se alguém coaduna com a ideia.
Senhores deputados e senadores que
tentam empurrar seus egoístas interesses, ocultando-os e usando-se do discurso
cristão, façam-me um favor:
Acordem.
Se lhes falta sabedoria para lembrar de
um princípio como o do livre-arbítrio das pessoas para as quais tentam forçar
suas vontades, definitivamente deveriam ao menos ter a humildade de perceberem
que são bem menos do que acham que são e pararem com essa falta de respeito à
vontade do povo brasileiro.
Vocês foram eleitos pelo povo, mas
estão muito, mas muito longe de refletirem a vontade popular.
No dia que quisermos a implantação de
uma religião oficial ou de princípios religiosos em nossas leis, nós mesmos
estaremos motivados a tal.
Parem de se passar por representantes
do povo. Vocês só estão representando seus próprios desejos nesse momento.
Palavras de um cristão que não se sente
representado por esses que se dizem "pregadores da Palavra" e se esquecem
que o país não é seu quintal para comandarem conforme lhes bem parecer.